quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Dica de leitura Liza: Clarice Lispector

Clarice, escritora brasileira nascida na Ucrânia, continua, mesmo após sua morte, sendo uma parte fascinante da literatura brasileira. Sensível, nunca se preocupou com o desenvolvimento linear de suas histórias. Ela, pelo contrário, exigia que o leitor se entregasse em meditação à aventura de ler e cair de coração aberto na profundidade de seus personagens complexos e introspectivos – em sua grande maioria.

Abaixo existe uma pequena passagem que vai fazer com que você capte o espírito de Lispector e de como é sua escrita. O texto refere-se a um encontro possível da escritora com Deus.





Encontro de Lispector com Deus (ou de Deus com Lispector).

– Clarice?
– Pois não?
– Finalmente nos encontramos.
– Com quem falo? Quem me aguardava? Onde você está?
– Aqui
– Não posso enxergar-te.
– Por enquanto.
– Tudo para mim, até após a morte, insiste em ser um mistério.
– Me responda, considera que sua passagem pela Terra foi algo proveitoso?
– Não sei dizer.
– Não me entende?
– Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado.
– Então...
– Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo.
– Eu te entendo.
– Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato... Ou toca, ou não toca. Se você me criou, seria esperado que me entendesse.
– Não te entendo.
– Aqui se pode fumar?
– Não me importo.
– Creio que fui enterrada com um maço de cigarros...
– Fique à vontade.
– … aqui está.
– Você foi ousada em tentar desvendar o ser mais enigmático que criei.
– Eu falhei nesta missão. Tentei, mas o que eu sinto não é traduzível. Eu me expresso melhor pelo silêncio. E como ninguém conseguiu ler meu silêncio... sinto que falhei.
– Está calma para quem sempre temeu a morte.
– Temia, mas ainda creio que é uma infâmia nascer para morrer não se sabe quando nem onde. Não é justo. Ou seria?
– O justo é relativo, Clarice.
– Deixe-me voltar?
– Para onde?
– De onde eu vim.
– Você já foi e já voltou de tantos lugares.
– Sempre desconfiei.
– Várias vidas, várias formas, várias experiências. Muitas Clarices.
– Sentia isso em mim.
– E pra que voltar?
– Você bem deve saber que o que obviamente não presta sempre me interessou muito.
– Quem é Clarice?
– Você disse que me entendia.
– Te entendo. Quem é Clarice?
– É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.
– Quem é Clarice?
– Por que insiste?
– Porque gostaria de descobrir.
– Não escondo nada.
– Sei bem que não.
– Eu sou uma longa frase com um ponto de interrogação, várias vírgulas, mas nenhum ponto final.
– Eu sou seu ponto final.
– Não é possível. Não tenho fim.
– Realmente, você nasceu para tomar conta do mundo.
– Sei bem; nasci incumbida.

– Você não volta mais, Clarice.
– E por que não?
– Sua missão já foi cumprida. Eu preciso de você aqui.
– A Deus eu só poderia dizer adeus. O que precisa de mim?
– Que me ajude a compreender minha obra.
– Cada artista que compreenda o que fez. Se lhe fugiu das mãos a interpretação, sinto muito. Não lhe posso ser útil.
– Não é assim.
– E como é?
– Você é parte de mim. Uma grande parte de mim que mandei à Terra.
– E por que fez isso?
– Os homens mereciam um pouco dessa nossa lucidez embriagada por devaneios.
– Isso dei a eles, certamente.
– Então fica?
– Fico.

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